O amplo espelho de água que banha a região de Aveiro, comummente conhecido como Ria de Aveiro, não é uma ria, na verdadeira aceção técnica do termo, já que esta é uma entrada de mar por terra dentro, sem influência de rios ou outras correntes de água doce. A Ria de Aveiro é uma laguna costeira estuarina, pois a ela afluem rios, riachos e ribeiros, de modo a que, conjuntamente com eles constitua uma ampla bacia hidrográfica, de mais de 3600 km2. O afluxo constante de caudais de água doce, mais ou menos intensos, ao longo do ano, e a abertura ao mar, através de uma barra definitiva, estabelecida em 1808, faz com que a laguna seja um ambiente natural de excelência para o povoamento por uma espécie migratória, a enguia-europeia (Anguilla anguilla).
A enguia (Figura 1) tem um ciclo de vida muito peculiar, com alguns detalhes que ainda se afiguram misteriosos para a ciência. Presume-se que se reproduza entre março e junho, no Mar dos Sargaços (Figura 2), uma área alongada, localizada na região do Atlântico Norte, cercada por correntes, nomeadamente a do Golfo, a oeste, do Atlântico Norte, no norte, pela corrente das Canárias, a leste, e pela Equatorial do Atlântico Norte, a sul.
Os ovos, fecundados a 400 m de profundidade, emergem, convertem-se em larvas e vão sofrer uma primeira metamorfose, ficando com o corpo achatado, sendo designada leptocéfalo. Nesta fase do seu ciclo biológico, a enguia, arrastada pelas correntes do Golfo e do Atlântico Norte, deriva até às costas europeias, durante dois a três anos, e sofrendo uma mortalidade natural de cerca de 80%. Nas regiões costeiras sofre uma segunda metamorfose, com o corpo a assumir a estrutura cilíndrica definitiva, mas ainda sem pigmentos, surgindo quase transparente e sendo-lhe atribuído o nome de enguia-de-vidro (Figura 3).
Após uma primeira migração em meio marinho, de milhares de quilómetros, a enguia-de-vidro (com cerca de 7-8 cm de comprimento) entra nos estuários e nas lagunas costeiras da região atlântica da Europa e do norte de África e do Mediterrâneo. A sua fisiologia modifica-se para aceitar um ambiente com pouco sal (salobro), encontrado nos estuários e nas lagunas costeiras, como a Ria de Aveiro, ou mesmo desprovido dele, como nos rios. A enguia migra até cursos de água onde o leito seja de areia ou entre areia e vaza, de preferência com vegetação imersa. No seu novo ambiente, com cerca de 15 cm, sofre uma nova metamorfose, em que o corpo progressivamente começa a ganhar uma cor verde-acastanhada, no dorso, e amarelada, no ventre, é a enguia-amarela (Figura 4). Esta fase do ciclo de vida é designada de fase sedentária ou de crescimento, já que nela a espécie mantém-se nos rios e lagunas, sempre vivendo nos fundos, refugiada em pedras ou nos leitos já referidos e tendo uma alimentação carnívora, de pequenos caranguejos, camarões, peixes e vermes. Durante o inverno, quando as águas registam uma temperatura muito baixa, a enguia enterra-se na areia e vaza e não se alimenta.
A maturação sexual marca a passagem à vida adulta e uma nova fase surge na enguia, registada com uma última metamorfose. Nos machos mais cedo (com 35 a 46 cm de comprimento) do que nas fêmeas (com 50 a 61 cm de comprimento), o corpo adquire novas tonalidades, negra, no dorso, e prateada, no ventre, e passa a ser denominada como enguia-prateada (Figura 5). Entre outubro e dezembro iniciam a sua fuga para o Atlântico, saindo dos estuários e lagunas durante a noite de lua nova de elevada obscuridade. Vão em direção à área onde ocorre a reprodução, numa migração de seis a sete meses, que a enguia realiza sem se alimentar. Uma vez realizada a postura, os reprodutores morrem de exaustão.
A característica de a enguia se reproduzir num local único e se distribuir pelos cursos de água de uma área continental de 90.000 km2 leva a que um exemplar que seja pescado na Ria de Aveiro tivesse um pai que viveu no rio Driva, na Noruega, e uma mãe que nasceu no rio Nilo, no Egito. As ações prejudiciais exercidas sobre a espécie numa determinada região, como a pesca excessiva ou a contaminação com poluentes, refletem-se, negativamente, em toda a população. Por outro lado, as alterações climáticas têm alterado o curso das correntes, como a do Golfo, atualmente deslocada mais para norte, que torna a migração do leptocéfalo muito mais demorada, dificultando, ou mesmo impedindo, o seu acesso às regiões costeiras.
Dada a qualidade alimentar da enguia nas diferentes fases da sua vida, como enguia-de-vidro, amarela ou prateada, a pesca a ela dirigida é muito intensa em toda a área em que ocorre, causando grande mortalidade. Por outro lado, a drenagem de zonas húmidas, as dragagens dos leitos, a construção de barreiras nos cursos de água e a poluição diminuem a área onde a espécie pode ocorrer, causando, também mais mortalidade. Em consequência das ameaças à espécie, ainda no oceano e, por ação do homem, na região continental, tem-se verificado um declínio drástico do aparecimento da enguia-de-vidro nos rios e lagunas, o designado recrutamento. Estima-se que o recrutamento tenha atingido um mínimo histórico (em relação ao período 1960-79) no Mar do Norte, inferior a 1%, e um valor muito baixo no resto da Europa, inferior a 6,5%, embora, aqui, se tenha registado uma recuperação ligeira a partir de 2009. O recrutamento da enguia-amarela tem decaído desde 1950 (ICES, 2012).